Questões Raciais

Em litígio, com a Marinha, quilombolas, na Bahia, temem gestão do novo governo

Comunidade, que foi visitada por comissão da OEA, em 2018, disputa área ocupada por base naval

“A gente aqui sempre viveu de balaio: tirar o cipó no mato, tirar piaçava, catar frutas. Quando os homens da base naval vieram, foi para “escarreirar”, nos botar para fora”.

Aos 96 anos, ainda lúcida, Maria de Souza Oliveira ergue-se com ajuda uma bengala, improvisada em um cabo de vassoura. Segue para cozinha, onde come um prato de feijão com farinha, fazendo pequenos bolinhos com os dedos das mãos.

Com quase um século de vida, é uma das moradoras mais antigas do Quilombo Rio dos Macacos, comunidade na divisa entre os municípios de Salvador e Simões Filho (BA).

Enfrentando um confronto de cinco décadas com a Marinha, pela posse da terra, a comunidade sumariza o temor da população quilombola em relação à gestão do presidente Jair Bolsonaro (PSL).

O presidente afirmou, na campanha eleitoral, que não demarcaria novas terras e chegou a ser réu em um processo, por racismo, após ter declarado que os quilombolas “não fazem nada” e que “nem para procriador eles servem mais”.

Logo na primeira semana, o governo chegou a suspender novas demarcações de terras, mas recuou da decisão.

No Quilombo Rio dos Macacos, o temor se dá em duas frentes. De um lado, as famílias estão preocupadas com o possível retardamento, paralisação ou até mesmo a revogação da demarcação de terras quilombolas pelo governo federal.

De outro, temem uma quebra na correlação de forças no litígio  travado com a Marinha, já que o novo presidente é militar e construiu uma trajetória política na defesa de pautas das Forças Armadas.

O confronto data dos anos 70, quando a Marinha instalou uma vila para abrigar 500 famílias de militares. em uma região onde já moravam famílias descendentes de escravos. O litígio pela posse da terra foi parar na justiça, numa ação que ainda tramita no Tribunal Regional Federal da 1º Região.

Uma simples visita ao quilombo pode se revelar uma odisseia. A única estrada, que leva à área quilombola, é interrompida pelas guaritas da vila naval, onde o acesso é controlado por guardas da Marinha. Pelas laterais, o acesso se dá por picadas abertas em meio à mata densa, que só podem ser percorridas a pé.

É neste local, isolado, que 85 famílias vivem em casas improvisadas, parte delas feitas de tábuas de madeira e telhado de amianto. Não há água encanada ou esgotamento sanitário.

A comunidade foi reconhecida como quilombola em 2015, nos últimos meses da gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Mas, três anos após a demarcação, os quilombolas ainda aguardam a titulação de posse da terra. E travam disputas com a Marinha em torno do acesso à água e da construção de um acesso à comunidade que não passe por dentro da vila naval.

Dos 301 hectares da região, 105 foram demarcados como território quilombola e os outros 196 ficaram sob responsabilidade da Marinha.

O desenho da demarcação, contudo, restringiu o acesso ao rio dos Macacos, principal manancial da região, onde os quilombolas pescavam e retiravam água para consumo próprio, para irrigar plantações e dar aos animais.

“Essa água é fundamental para a gente, já que a maioria vive da pesca e da roça. Não queremos tomar a área da Marinha, mas que a área da barragem seja compartilhada”, afirma Rosimeire dos Santos, 40, uma das líderes do quilombo.

No início de 2016, a Marinha iniciou a construção de um muro que isolaria a sua área e restringiria o acesso ao rio. Os quilombolas protestaram e impediram que o muro continuasse a ser erguido.

Em contrapartida, as Forças Armadas interromperam a construção de uma via alternativa, que levaria a área quilombola à pista principal, sem passar por dentro da vila.

A nova estrada fazia parte de um acordo firmado entre a Marinha e comunidade, mediado pelo Ministério Público Federal. O acordo ainda previa a reforma das casas em que vivem os quilombolas, dando condições mínimas de moradia às famílias.

Além de restringir o acesso ao rio, a demarcação também tirou, dos quilombolas, trechos com importância simbólica para as comunidades.

Um deles é a Fonte da Luzia, um pequeno manancial usado em cerimônias religiosas por adeptos do Candomblé, que moram no quilombo. Árvores frutíferas como jaqueiras, mangueiras e cajueiros, cuja coleta dos frutos ajudavam no sustento das famílias, também ficaram do lado da Marinha.

O procurador da República, Walter Rothenburg, diz entender a preocupação da Marinha em erguer um muro como medida de segurança, mas afirma que o isolamento da área não pode resultar no cerceamento de direitos, como o acesso à água.

“É preciso construir, buscar um consenso. Não é possível que duas comunidades, tão próximas, vivam em universos completamente distintos. Eles precisam conviver”, afirma o procurador.

A convivência entre militares e quilombolas, contudo, tem um longo histórico de hostilidades. Além de um histórico de coação das famílias para deixarem a região, há relatos de ameaças e agressões praticadas pelos militares.

Em fevereiro de 2014, oficiais da Marinha foram flagrados agredindo a líder quilombola Rosimeire dos Santos e seu irmão Rosinei dos Santos, na portaria da base naval.

O caso foi revelado pelo Folha, que teve acesso às imagens do circuito interno de segurança, que mostram as agressões. Na época, a Marinha emitiu uma nota em que disse repudiar atos de violência.

Nos últimos meses, durante a campanha eleitoral, o clima de hostilidade se intensificou. Os quilombolas afirmam ter sido ameaçados por moradores da vila naval, que são partidários do novo presidente e afirmam se sentir ainda mais vulneráveis.

“Antes as coisas não avançavam, mas pelo menos a gente podia gritar. Mas o que eu estou vendo, hoje, é um silêncio total. É como se a gente estivesse nadando, nadando e morresse na praia”, diz Olinda de Souza Oliveira, 59, também moradora do quilombo.

Em novembro do ano passado, a comunidade recebeu representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – OEA, que apura se há discriminação, vulnerabilidade e exclusão social dos quilombolas.

Em nota, a Marinha do Brasil informou que a construção do muro e da nova estrada foram interrompidas “em virtude da resistência de representantes da comunidade à continuidade das obras”.

Também afirmou que, atualmente, não há restrição ao acesso de moradores da comunidade, ao Rio dos Macacos. Mas destaca que dois laudos apontam que a água da barragem não é potável.

A Marinha ainda informa que facultou, à comunidade, o acesso à barragem para fins de pesca e de rituais religiosos, por meio de cadastro prévio.


Por: João Pedro Pitombo
Fotos: Raul Spinassé
Fonte: Folhapress

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NeyBarbosa

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